O colega de quarto

☈ick Viajante
Folha em Branco
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7 min readAug 27, 2020

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As grandes gotas da densa chuva castigavam qualquer coisa que se atrevesse a encarar o céu fechado. O rádio avisara da torrente tropical que assolaria a região. “Que sorte meus amigos, que sorte o valoroso Timóteo tem!” pensou com um amargo sorriso, abrandado com a diversão no próprio sarcasmo, o repórter.

A noite avançava enquanto ele procurava um lugar para ficar. Chegara na cidade suburbana logo antes de escurecer, mas, por um mal-entendido, a reserva que o jornal para o qual trabalhava fizera no melhor hotel da região, longe de ser um 5 estrelas, mas melhor do que um de 2, foi cancelada. O editor-chefe prometera no telefone resolver assim que possível, mas o valoroso Timóteo tinha uma sorte dos diabos e nenhum outro hotel atendeu. Restara, por indicação de um solitário guarda de trânsito, um albergue. Tim, o sortudo do ano, seguiu as direções dadas até uma fachada saída diretamente do expressionismo alemão. Olhou com julgamento pela janela do carro e encontrou, através de grossas camadas de gotas, uma placa com o nome do albergue e o telefone daquela espelunca. Mas havia uma cama lá dentro, provavelmente, “Se eu não tiver tirado um ‘jackpot’ na gloriosa caça-níquéis da vida” riu-se levemente. “Odiaria” pensou ele refletindo sobre dormir no carro.

A porta abriu, contrariando o pessimismo do jornalista. A recepção, um umbral com mais tabaco do que oxigênio, era pequena e no balcão de atendimento um velho macilento olhou por cima do livro puído. Tim entendeu que só havia uma cama disponível em um aposento com um hóspede já, que deveria se trocar antes de entrar no quarto para evitar acordar o colega de quarto e que o café abria 6:30 e encerrava 10:00. Grato por haver uma cama longe daquela chuva, pagou adiantado e foi se arrumar.

De pijama, Timóteo entrou o mais silenciosamente possível permitido pela velha estrutura de madeira do lugar. O ar estava pesado, quase gorduroso. Não conseguiu enxergar muito, mas ouvia muito bem o ronco do colega. Bastou andar cuidadosamente para o lado oposto para encontrar sua cama. Deixou a mala como estava, após certificar-se de que estava trancada, deitou-se, virou para o canto e contra todas as hipóteses que imaginara, adormecera como um anjo.

Acordou com o bater rápido, intenso e barulhento dos dentes do outro hóspede. A surrealidade o travou por alguns segundos, mas Tim perfurou o torpor e cutucou o companheiro, murmurando secamente “Êh parceiro, tá tudo bem? Tá acordado?”. Pelo toque soube que o colega de quarto estava deitado como se fosse um defunto — e estranhou a relação que fizera. O homem continuou batendo forte e rapidamente os dentes. A gastura profunda venceu Tim. Levantou-se e cutucou mais intensamente o homem que dormia. O ritmo e força do bater de dentes não se alteraram. Tim, em um acesso de ‘qualquer coisa para esse homem parar — e não se machucar se possível’, acendeu a luz. O quarto, feio e mofado, comportava duas pessoas razoavelmente. Tim foi arrancado da esfera do reconhecimento pelo estranho silêncio. Olhou novamente para o homem na cama. O colega de quarto não mais rangia os dentes e parecia até mais corado. Tim se sentou calmamente na cama e aguardou um tempo, para ter certeza de que o episódio do que quer que fosse tivesse cessado de vez. Só então notou de fato o colega. Um homem de meia-idade, barba por fazer, aparência de alguém que havia sido moderadamente judiado na vida. O relógio contou pouco menos que meia hora antes que Tim tentasse dormir de novo.

Tim acordou com o celular. Eram 8 da manhã. A luz do sol era inclemente pela janela e ainda assim o frio arranhava os ossos, punindo qualquer pedaço de pele que estivesse exposto. Olhou para o lado, mas a cama do colega de quarto estava militarmente arrumada. Intrigado, pois entendia o próprio sono como leve, Tim olhou o relógio novamente. Eram mesmo 8 da manhã. Relegando ao subconsciente a tarefa de lidar com a estranheza, focou em se arrumar e ir buscar o café da manhã. Logo mais, às 10, entrevistaria um comerciante local a cerca da dinâmica de preços em cidades menores , etc.

Uma torrada na boca, vestindo o casaco com pressa, Tim passou pelo balcão de atendimento registrando mentalmente que perguntaria ao atendente quando voltasse quem era o homem com quem estava dividindo o quarto.

O dia foi longo. O entrevistado era consideravelmente obtuso. Havia material para algo minimamente interessante, mas para Tim foi como extrair leite de pedra. Ia adiantar as férias, decidira, para compensar aquela enrascada. Entrou no albergue e ia perguntar sobre o outro homem para o atendente, mas a cara emburrada que o fitava por cima do balcão tirou qualquer gota de paciência que restava em Tim, que só aceitou o cansaço e foi se preparar para dormir.

Entrou no quarto e o colega não estava lá. Pegou sua toalha, escova e sabonete e foi para o banheiro. Se permitiu um banho de 10 minutos. Voltou para o quarto e ali ainda só havia ele. Embalado pela exaustão, apenas deitou e dormiu.

Cascalho. Parecia cascalho rolando. Bolas de gude sendo arremessadas umas contra as outras violentamente. Cacos de vidro sendo mastigados, quebrando e quebrados. Tim acordou assustado e sem noção de si. Tudo escuro e o barulho escruciante sem cessar. Precisou acender a luz primeiro dessa vez. O colega de quarto, deitado de frente, tremia enquanto batia e rangia os dentes, o cobertor atirado de lado. Tim segurou o homem pelos ombros e sibilou um “Acorda caralho!” entre os dentes. A cabeça dele pareceu tremer mais que o corpo, quase um borrão, por 1 segundo. Tim o largou e recuou. Por reflexo, pegou um copo cheio que estava em seu móvel de cabeceira e jogou a água no rosto do colega de quarto. O homem apenas parou. Tim prendeu a respiração por reflexo. O colega de quarto apenas passou a mão pelo rosto e se virou. Tim registrou sem pensar um som do lado de fora da janela enquanto deslizava de volta para a própria cama. Demorou para a dormir com o sabor seco da falta de realidade na boca.

Tim levantou de sobressalto. Olhou o celular, sabendo que o alarme não tocara — eram já 10:30. A luz de um dia nublado entrava pela janela enquanto o repórter aceitava que perdera o compromisso da manhã e um bom lugar no já não bom de todo café do albergue. Sentado na cama, deixou o sono e o desgosto cederem o suficiente para se levantar. Também cederam o suficiente para ele se lembrar do que aconteceu durante a noite. A outra cama estava vazia, os lençóis dobrados. Havia uma distinta mala com etiqueta, no entanto. Tim leu sem pudor algum. ‘Ernesto H.’ vindo direto de ‘Istambul’.
Um zumbido profundo, como o de um equipamento elétrico de alto consumo, tomou conta do quarto. Instintivamente Tim soube que vinha da mala. “A curiosidade matou o gato” pensou, com um riso mental desconcertado e nervoso, enquanto abria o zíper com cuidado. Estava estranhamente escuro dentro da mala exceto apenas por um brilho nada natural, uma aura de uma cor incômoda delineava a silhueta de algo que parecia um pequeno ídolo. Na penumbra, Tim identificou uma silhueta felina. Ouviu um barulho do lado de fora do quarto e fechou rapidamente a mala, se virando casualmente para a própria cama como que se tivesse se levantado direto para aquela posição. Após algum tempo, aceitou que não era o Sr. Ernesto.

por: Rick V.

O dia fora longo. O repórter precisou correr atrás da entrevista perdida e improvisar qualquer coisa plausível para justificar o extenso atraso. Queria perguntar no balcão algo sobre seu colega de quarto, mas a energia estava tão baixa que ele decidiu simplesmente perguntar na manhã seguinte, antes de fechar a conta e ir dirigindo para casa. Decidiu que, embora não fosse ajudar em nada, tentaria escrever algo baseado na estranheza de tudo que estava passando naquele lugar. Chegou no quarto, saiu para o banho, voltou e dormiu sozinho, como se fosse o único hóspede ali. Estava contando com a tempestade prevista na madrugada para camuflar qualquer outro ruído.

Acordou dessa vez com um trovão de romper os tímpanos. Sentou na cama. Buscou o copo de água. O bater das gordas gotas no telhado eram intensos e volumosos. Enquanto bebia avaliava o som. As gotas batiam fortes, tilintavam como cacos de vidro. “Não falaram sobre granizo” pensou baixando o olhar. Um relâmpago particularmente intenso iluminou o quarto tempo o suficiente para Tim conseguir enxergar seu colega de quarto. Ele estava com os olhos vidrados e escancarados, fitando o teto, o maxilar era um borrão batendo em uma velocidade desumana, fazendo seu corpo todo tremer a cada impacto dos dentes. E havia uma sombra projetada na cama. Tudo escureceu e Tim olhou para a janela.

Outro raio cortou a escuridão da noite e havia um gato do lado de fora. Tim pegou, trêmulo, o celular e se aproximou da janela com a lanterna do aparelho ligada. O gato, de pelagem densa e maltrapilha, olhava fixo para Ernesto, abrindo e fechando a boca em uma velocidade nada natural. Tim então congelou. Virou a lanterna para o colega de quarto e sua sanidade rachou: a velocidade e o ritmo eram os mesmos. Virou-se novamente para o gato, que parou imediatamente então, os olhos arregalados vidrados no homem deitado. O que restava da consciência de Tim registrou o estranho silêncio através do ruído da tempestade.

Olhou para o estranho.

O estranho olhou para ele.
As pupilas do colega de quarto se tornaram fendas refletindo, sinistramente, toda a luz da lanterna.

por: Rick V.

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