Conduíte

☈ick Viajante
Folha em Branco
Published in
5 min readJun 27, 2019

--

Sugestão de trilha para a leitura =]
por: Rick V.

O farfalhar constante do vento contra as folhas denunciava uma tempestade daquelas e ainda assim eles não tiravam os olhos um do outro. A grande criatura, um dinossauro perdido no tempo, exibiu os dentes cerrados com um rosnado tão gutural quanto a fome que provavelmente sentia. Uma massa de mais de 500 quilos de muitos músculos e vontade própria, coberta até o início do pescoço por uma longa plumagem negra como a meia noite sob a lua nova e a cabeça nua, longa e quadrada com cicatrizes e placas grossas de pele densa e acinzentada; os olhos eram livros abertos para quem quisesse ler e qualquer criatura senciente poderia ter lido “você é comida” nas agitadas pupilas em fenda.

No lado oposto da clareira um homem de linhas corporais levemente definidas sob a pele, protegido dos elementos apenas pelas vestes de couro de algo que não mais lutava pela vida, olhava para cima, fitava as fendas abismais nos olhos da alta hierarquia da cadeia alimentar. Ofegava, medo e raiva, segurando uma haste nodosa, coberta por tiras de uma grossa pele bestial. Na ponta mais próxima do chão uma colorida plumagem, pendurada por uma amarra. Na ponta oposta, um pedregoso volume, desproporcionalmente grande na composição, envolto pelas irregulares rajadas azuis de diversos tons impressas em um couro visivelmente grosso, oscilava em sincronia com a pesada respiração do homem.

O farfalhar, o rosnar e o arfar foram anulados pelo som seco do trovão que rasgou o céu, uma fenda fulgurante na escuridão do firmamento tempestuoso. O colosso avançou abrindo a boca, mais dentes do que seria saudável parar pra contar. A distância favoreceu o homem que usou o peso do enorme martelo de guerra para se lançar para o lado. A besta ajustou a própria trajetória para abocanhar sua presa que astuciosamente utilizou do momentum de sua esquiva para brandir o martelo.

O urro surpreso, dor e raiva misturadas no som gutural, poderia ter sido ouvido sob o trovão de antes. Sem dar trégua, o homem experiente continuou o uso de forças físicas que desconhecia mas dominava e imprimou mais força na arma, mirando os longos vetores resultantes na cabeça do colosso. Não houve resistência.

A cabeça feroz não estava mais onde ele achou que estaria e o rabo, do tamanho da própria criatura e blindado sob couro armado sobre duros ossos e rígidos músculos, o atingiu em cheio, arrancando o fôlego já curto de seus pulmões. Você não é um predador no auge se não sobreviveu a mais batalhas do que suas cicatrizes são capazes de narrar. O homem voou, sem soltar o martelo, e bateu contra o tronco de uma árvore. A fera fez um movimento reptiliano ao se virar novamente de frente para sua presa. Bateu pesadamente o rabo no chão, em desafio e um som entrecortado e oco saiu de sua garganta.

O homem, zonzo, ciente do pouco tempo que tinha para se recompor, se apoiou no tronco para ficar de pé. Sua visão, turva até então, recuperou-se no exato instante em que a mandíbula gigante acompanhava o giro da cabeça, que claramente queria partir a presa ao meio. O homem aceitou o destino, sentiu o bafo fétido de outros seres azarados como ele e ouviu o som estranho dos dentes da criatura rompendo as fibras do tronco. Ele ainda estava vivo, cercado por dentes pontiagudos, a língua agitada tentando se enrolar nele, mas salvo pelo diâmetro da gigante árvore. O colosso parecia levemente atordoado. Sem perder tempo ele se abaixou e rolou para longe. Sem soltar o martelo.

Enquanto o predador se soltava do tronco, ele se levantou e, usando o martelo como apoio, se recuperou o que pôde.

De olhos fechados, ainda medo e raiva, ouviu atentamente, se permitindo o tempo de focar no som da criatura se soltando. Ele ouviu muito mais. O farfalhar ficara mais intenso, as gotas que começavam a cair criavam baixos sons contra as grossas folhas da floresta ao redor. A tempestade se fazia cada vez mais presente, com trovões distantes e fortes ventanias caóticas. E então, um rosnado e um passo pesado.

Os olhos se abriram. O colosso balançava a cabeça, abria e fechava e boca, engolia, voltando a si. Por um breve instante homem e colosso se observaram com pensamentos, e instintos, insondáveis. Sem rosnar, pupilas fixas, o colosso investiu.

As penas no martelo começaram a brilhar levemente. O homem começou a gritar em desafio, com toda força que podia. O martelo começou a girar verticalmente, um jogo rápido e poderoso de braços e pernas. O couro que cobria a cabeça da arma soltou pequenas faíscas azuis no primeiro giro.

Em três passos largos, o colosso poderia se alimentar finalmente.

Sem parar seu brado de guerra, o homem imprimiu mais força e o martelo girou uma segunda vez. As penas pareciam incandescentes e o couro era atravessado por pequenos e intensos arcos voltaicos. O cheiro de ozônio se fez bastante presente. Os pelos se arrepiaram além do medo e frio.

Um passo e o predador urraria em dominância sobre o corpo de sua presa.

O início do terceiro giro, a cabeça do martelo em zênite com a firme base do homem, trouxe consigo um som estranho. O odor do ozônio, agudo e penetrante, abraçou-os. Os arcos elétricos no martelo se estendiam por toda a clareira. A cabeça do colosso estava perigosamente próxima. Também estava a mais pesada ponta do martelo. Um momento antes do impacto, um silêncio varreu os arredores, como se o vento segurasse o próprio fôlego. Os arcos sumiram, a cabeça do martelo brilhava azul intensa.

No instante seguinte, o instante final, o martelo explodiu um raio direto dos céus no colosso.

--

--

If love is an act of courage, to write for others to see is an act of bravery.